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28 de março de 2024
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Mulher de Pio IX vira referência gastronômica no interior de SP

O que tem no tempero de Maria? Ela começa salpicando garra. Depois, coloca boas doses de determinação. No final, rega tudo com amor.

Eis o segredo de Maria do Socorro, a cozinheira bicampeã do Comida di Buteco Ribeirão Preto. Por dois anos seguidos (2018 e 2019), ela esteve à frente da execução dos pratos que levaram “O Linguiceiro Bar” para o pódio do concurso que mobiliza os bares da cidade.

Não foi ela quem inventou as receitas. O dono do bar conta que pensou nos pratos, junto com sua sócia. As mãos de Maria na execução, porém, é que fazem surgir um suspiro a cada mordida. Um papo com ela e já se entende logo que o tempero que coloca na comida é tão intenso quanto aquele que aprendeu a colocar na vida.

– O tempero do amor é o carro chefe. Não adianta fazer por fazer, que não vai dar certo.

Maria do Socorro de Sousa, 44, chegou a Ribeirão Preto 21 anos atrás, com dois filhos pequenos, nenhum dinheiro no bolso e história de muita tristeza na bagagem.

Conta que só conseguiu vir porque o ex-marido pagou as passagens. Não tinha dinheiro nem para elas. E ele só aceitou porque não acreditou que ela cumpriria a promessa de nunca mais voltar.

Se casou aos 14 anos e teve o primeiro filho aos 15. Depois de 12 anos vivendo um relacionamento de violência, partiu decidida a transformar a vida.

– Ele só pagou as passagens porque achou que eu iria quebrar a cara e pedir para voltar. Achava que eu não iria sobreviver. Mas eu sou determinada. Se não estou feliz, nada me prende. Se tiver que começar do zero, eu começo.

Os filhos tinham cinco e nove anos. No começo, o coração apertava. No Piauí, não faltava nem para ela e nem para eles comida boa, roupas, casa espaçosa. O que faltava era a tal felicidade.

– Minha família pensava que só porque ele me dava as coisas, eu tinha que ficar com ele. Pensavam nas coisas de viver, mas não na minha felicidade. Em Ribeirão, teve dia que eu queria dar um pão para os meus filhos e não tinha. Mas eu falava: eu vou vencer!

Trabalhou muito (e é assim ainda hoje). Foi faxineira, moto taxista, frentista, teve um bar até se encontrar como cozinheira, cerca de 10 anos atrás.

Assim que arrumou seu primeiro emprego com carteira registrada, como faxineira, se matriculou no supletivo em uma escola pública e andava a pé na volta para casa, no final da noite, quando a jornada de trabalhos e estudo terminava. Conseguiu, assim, concluir o Ensino Médio.

Foi construindo seu pequeno grande império. Hoje, tem imóveis próprios, acabou de comprar um carro, usa as férias para viajar, criou e encaminhou seus filhos.

Recentemente, mais um feito entrou para a lista das conquistas. Esse, não custou dinheiro, mas o carinho que coloca em seu trabalho. Conquistar – ao lado de toda equipe do bar – mais um título no concurso gastronômico foi para ela mais uma honra.

– Eu cheguei aqui com a cara e a coragem, com passagem comprada pelos outros. Hoje, por onde eu passo, as pessoas falam que eu sou exemplo. Tem coisa mais prazerosa do que escutar isso?

O Linguiceiro Bar

Maria do Socorro encontrou na roça onde cresceu sua melhor definição sobre si mesma.

– Eu falo que eu sou aroeira, porque nem cupim derruba. É o pau mais forte que tem. É para o resto da vida.

Nasceu em um sete de setembro, dia de Independência:

– Até a data! Eu te falo: não vim por acaso.

O tempero que mais usa é a confiança em si mesma. Tem orgulho da trajetória que construiu. E faz questão de mostrar com o sorriso como marca registrada do rosto. Também não dispensa uma maquiagem, mesmo quando está na cozinha. Diz que gosta de estar sempre bem arrumada.

– Passo dificuldade, mas nunca na vida você vai me ver xingando, mal dizendo.

A família vivia na zona rural de uma pequena cidade do interior do Piauí, Pio IX, que hoje tem cerca de 17,7 mil habitantes e ainda sofre com a seca.

Sua mãe não pôde estudar, mas sonhava em estudar os filhos. Maria diz que vem dela a garra para o amargor da vida. Alugou uma casa na zona urbana da cidade e foi mandando os filhos mais velhos, um a um, para que pudessem ir à escola.

Maria é a 12ª, a caçula, que teve que nascer no hospital, diferente dos outros filhos paridos em casa. Diz que foi gerada “na costela”. É o que se explicava na época. Por isso, nasceu no Ceará, cidade de Campos Sales, a 61 quilômetros, onde havia o hospital mais próximo.

– Mas eu fui criada no Piauí!

Faz questão de frisar.

Aos sete anos, teve que ir morar na cidade, longe da mãe, para estudar. A saudade era tanta que pegou birra dos estudos. Chorava para ir embora e não queria ir para a escola.

Aos 14, então, passeando na casa da mãe, conheceu o homem com quem se casou.

 – Eu casei achando que minha vida iria melhorar, mas aí minha vida virou um inferno.

Foi morar na roça, perto de seus pais, mas conta que o relacionamento era feito de desrespeito.

– Ele me traía, era mulherengo e, se eu reclamasse, apanhava.

Teve a primeira filha aos 15 anos e o segundo aos 20. Com 26, decidiu ir embora. Escolheu Ribeirão Preto porque tinha parentes por aqui.

– Foi no dia 21 de abril de 1998 que eu decidi. Ele chegou com uma carta de outra mulher… eu era doida por ele e, então, resolvi que tinha que ir para longe para mudar de vida.

Nos primeiros dias, morou com uma sobrinha. Depois, comprou um puxadinho no Jardim Progresso com o dinheiro de seu único bem: uma moto que havia ganhado em um bingo, no Piauí, e deixado na casa de um irmão para o caso de uma grande emergência.

A casa era feita de dois cômodos e Maria conta que tudo era no improviso.

– A água era gato, a luz também. A gente dormia no chão. Quando chovia, eu tinha que amarrar sacos nos pés, para não chegar no trabalho com barro.

Seis meses depois de sua chegada, conseguiu seu primeiro emprego com carteira assinada em uma grande empresa de limpeza. Além do horário normal de trabalho, fazia bicos limpando consultórios. À noite, ia para a escola.

– Meus filhos foram criados no Jardim Progresso, sozinhos. A irmã, com nove anos, cuidava do irmão. Mas eu precisava trabalhar. Pôr alimento na mesa.

Por um tempo, andou quilômetros a pé, na volta da escola para casa. Depois, comprou uma bicicleta. Saía do Jardim Progresso e pedalava até a zona Sul da cidade para trabalhar (cerca de oito quilômetros), ia para a escola pedalando e depois voltava para casa.

– A vida foi indo assim. Logo, foi melhorando.

O linguiceiro bar ribeirão preto

Nunca teve problemas para trocar de emprego. Se algo não estava bom, partia para a próxima. Trabalhou em uma agência de publicidade e, quando o negócio faliu, foi trabalhar de mototaxista.

Abriu um bar no Parque Ribeirão, que administrou por uns dois anos até perceber que no inverno não havia movimento – e nem lucro. Fez um curso de frentista e passou a trabalhar em um posto. Nas transições entre um trabalho e outro, acumulava duas, três jornadas.

Soube que iria abrir um bar na avenida Nove de Julho e estavam procurando funcionários. Enviou o currículo e começou lavando louças. Em pouco tempo, passou a fazer os drinks e logo foi convidada para a ajudar na cozinha. Quando o chef se mudou para o Japão, assumiu a vaga.

– Sem curso, sem nada, depois de três meses lá. Eles falavam: ‘Você vai tirar de letra’. E eu fui!

Se encantou pela gastronomia. Depois de dois anos e meio no bar, conquistou uma vaga na cozinha do Clube de Regatas, em Ribeirão, onde trabalha há oito anos.

E foi somando outros restaurantes e bares no contra turno. Há pouco mais de dois anos, está no Linguiceiro, onde soma os títulos do Comida di Buteco.

Conta que quando entrou no bar a receita que rendeu o primeiro título já fazia parte do cardápio. Colocou apenas seu carinho na execução. Frederico Pierri Dias Campos, o dono do bar, explica que cria as receitas com base em sua experiência com cozinha, que começou ainda na infância acompanhando a mãe, dona de um buffet.

Depois de 10 anos atuando como professor de Biologia, ele passou outros 10 na Europa, onde teve a ideia de trabalhar com charcutaria. “O Linguiceiro Bar” nasce de toda essa vivência, assim como os pratos Porco shot (2019) e Sushi Caipira (2018), que ganharam o concurso.

Frederico tem certeza de que a premiação só foi possível pelo trabalho em equipe:

– A gente não conseguiria nada se não tivesse a equipe envolvida, atenta, abraçando a causa.  O bar é bicampeão, mas eles também são.

Para Maria, o toque especial é o amor e a geleia de pimenta com abacaxi que garante sem modéstia, não existe como a sua.

O linguiceiro bar ribeirão preto

Nesta segunda-feira (15), Maria esteve em São Paulo para a premiação nacional do Comida di Buteco. O bar não conquistou o pódio, mas a alegria dela continuou contagiante. “A festa foi maravilhosa. Ano que vem estamos aqui de novo. Se Deus quiser”, contou por mensagem.

Diz que já poderia deixar de dobrar os turnos de trabalho. Cozinha de segunda a segunda, entre o Regatas e o bar – das 6h às 15h no clube e das 16h até o movimento cessar no Linguiceiro.

Acredita, porém, que a vida é feita de propósitos que a gente traça e vai caminhando até completar.

– Agora, o meu sonho é uma casa na praia. Se Deus quiser, eu chego lá!

Alguém duvida?

A primeira vez que voltou ao Piauí, depois de 15 anos, levou sacolas e mais sacolas de presentes no ônibus, que levou três dias para chegar. Ficou 40 dias matando a saudade da família. Foi só na segunda vez que ela, finalmente, conheceu as praias da sua terra.

Agora, conta que faz questão de viajar nas férias.

– Já fiz três viagens de avião! A próxima é no meu carro!

Maria mora sozinha. Já teve companheiros, mas, assim como no trabalho, aprendeu a partir quando as coisas não são como ela quer.

– Eu tento passar minha história para meus filhos. Quero que eles sejam vencedores. Se hoje você sofre, amanhã vem a vitória.

Diz que sempre sentiu vontade de contar sua história para alguém. Nos conhecemos no dia da premiação do Comida di Buteco em Ribeirão. Ela estava lá, toda orgulhosa, contando que era bicampeã.

– Eu nunca tive vergonha de falar da minha origem. Agradeço pelo que eu sou.

O que tem no tempero de Maria?

Fonte: História do Dia

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