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23 de abril de 2024
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Preso por engano. A história do jornalista piauiense confundido com chefão do tráfico de drogas

Qual a chance de seu CPF servir para registrar números de celulares usados por uma quadrilha de traficantes que negociava drogas e armava assassinatos? E qual a chance de você saber disso tudo da pior forma? Ou seja: ser acusado por tais crimes e ser apontado como chefão de uma quadrilha? Pois isso ocorreu na cidade piauiense de Picos (a 311 quilômetros de Teresina). O injustiçado-acusado foi o jornalista Joel Marques, um homem pacato, ligado aos movimentos da Igreja Católica e que se viu envolvido em uma história que levou à sua prisão e muita humilhação.

Após três anos e meio os erros foram reparados. O Estado do Piauí foi condenado em tempo recorde.

Joel Marques abriu sua residência à reportagem de O Olho para falar do caso. Até hoje, mesmo sempre inocente, se emociona ao falar dos dias em que esteve preso e foi vítima de humilhações. Diz que só não cometeu suicídio na cadeia por intervenção divina.

Contou em riqueza de detalhes o que passou, inclusive como foi parar em um dos piores e mais perigosos presídios do estado. Além disso falou também como, ao ser comprovado sua inocência, foi tratado pela Polícia Civil do estado (responsável pelas investigações do caso). O erro na prisão de Joel foi tão grande que mudou a maneira de se fazer operações policiais no Piauí.

Fotojornalista Joel Marques Cardoso

O fotojornalista ainda relatou como está sua vida hoje e como tudo o que passou serviu para ter uma vida muito melhor.

Mas, mais que a história de um homem simples, do interior do Piauí, cumpridor de suas obrigações caseiras, sociais e acadêmicas, surge uma das maiores histórias de injustiças já ocorridas na região de Picos. Uma injustiça que terminou com final menos traumático em que o injustiçado pôde viver para contar detalhes. Foram eles, nunca antes publicados, que Joel Marques revelou em entrevista exclusiva que você agora acompanha em tópicos.

QUEM É JOEL MARQUES?

Joel Marques Cardoso, 51 anos, é casado há quase 25 anos com a professora Irinalda Maria. É pai de três filhos: Rodrigo José, 22 anos, Maria Clara, 18 anos, e João Gabriel, um mês.

O fotojornalista nasceu em Teresina e veio criança para Picos quando seu pai, que trabalhava na construção da BR-316 (que corta a cidade), foi transferido para abrir a estrada no Sertão do Piauí. Terminaram ficando. É o terceiro de uma família de oito irmãos.

É um homem que cresceu dentro da Igreja Católica de Picos, que ficou conhecido na cidade por seus trabalhos de fotografia social e também por ser uma das lideranças do Encontro de Casais Com Cristo (ECC) e do Terço dos Homens. Nos últimos 20 anos sempre foi comum encontrar Joel e a família nas missas da Catedral de Nossa Senhora dos Remédios.

POR QUE O JORNALISTA FOI PRESO?

Joel Marques era acusado de ser o chefão da quadrilha. A polícia não sabia quem era o bandido. Mas investigações de mais de um ano apontavam para que a pessoa que usava essa alcunha um perigoso traficante em ação na região de Picos no início de 2012. Chegou-se a Joel, porque um dos números grampeados pela polícia, com autorização da Justiça, estava em nome no CPF do fotojornalista. Quem registrou o número e porque estava no nome dele, sem ele saber: é um mistério que até hoje ninguém sabe dizer.

Ficha criminal de Joel, para a polícia: Maike

Segundo inquérito policial que desencadeou a Operação Segor, o traficante comandava a região com mãos de ferro. Era bruto e teria tramado várias mortes na região. Não dispensava os oponentes e concorrentes. Pouco se sabia sobre ele, sobre seus passos. Pelos grampos apontou-se que era acusado de comandar uma rede de mais de 50 pessoas.

A investigação parecia caminhar para uma das mais bem sucedidas ações contra o tráfico na região de Picos. Com os dados do telefone foi fácil chegar ao endereço do acusado. O acesso ao banco de dados do Detran-PI forneceu a foto do jornalista. Só que sempre pensava-se que Joel Cardoso era o tal criminoso.

Na cidade, dominada em partes pelo tráfico de drogas, era esperada uma ação enérgica da polícia. Poucos traficantes foram presos entre 2011 e 2012. Muito pouca droga foi apreendida pela polícia na época. Enquanto isso, em praticamente todas as praças e em muitos pontos públicos sabia-se que cocaína e maconha eram tão facilmente encontradas como bombom.

Prender o acusado de ser chefão era o objetivo número um para mostrar respostas à sociedade.

Joel Rodrigues era o homem caçado de maneira errada. O número registrado em nome dele é que fez a polícia a pensar que Joel era o chefão. Por isso a vida do jornalista entra por uma série de coincidências negativas e por alguns erros de investigação da Polícia Civil do Piauí.

Outro erro não apurado é que Joel Rodrigues e o verdadeiro acusado moravam na mesma rua, Carlos Marcílio (conhecida também por Maracanã) que margeia o Centro de Picos e o bairro Canto da Várzea. Mas nunca procurou-se comparar realmente se o jornalista e a pessoa que usava o telefone para negociar drogas e mandar matar desafetos, eram o mesmo homem. A casa do verdadeiro acusado fica a mais de um quilômetro da casa que Joel morava. Os pais do acusado é que residiam nas proximidades do jornalista.

Fotojornalista morava na mesma rua do acusado de ser o chefão do tráfico de drogas em Picos que levou à sua prisão

Um fato, não apurado inicialmente pela polícia, levou à prisão de Joel Marques. Ele foi tido como o mais perigoso de todos os quase 60 investigados pela Operação Segor.

O DIA DA PRISÃO

Membros das polícias Civil e Militar fizeram esquema cinematográfico para irem no final da madrugada do dia 09 de fevereiro de 2012 até a residência número 899 da rua Carlos Marcílio, bairro Canto da Várzea, região central de Picos.

Ali morava uma família muito conhecida pela sua devoção e envolvimento com movimentos católicos: o fotojornalista Joel Marques, então aluno do oitavo período do curso de Jornalismo da Faculdade R.Sá, a esposa, o filho mais velho, militar do Exército, e a filha, estudante secundarista.

Joel Marques guarda todos os documentos do caso

Joel conta que naquele dia, uma quinta-feira, acordou bem cedo, tomou banho e foi ver os primeiros noticiários da TV. Relata que algo estava estranho, pois não acostumava despertar tão cedo. “Botei até uma calça. Rapaz, parecia que era mesmo mensagem divina”, relatou.

O fotojornalista viu o filho saindo de casa. Na época, João Gabriel era militar do 3º Batalhão de Engenharia e Construção (BEC) e ia de casa para o trabalho de bicicleta. Ao sair o filho viu que a frente da residência estava lotada de policiais que perguntaram se ali era a casa de Joel Marques. Ele confirmou. Os policiais pediram o filho para chamar o pai.

“Pai é a polícia”, contou Joel, dizendo-se muito espantado. Depois disso os policiais foram adentrando a casa e fazendo revista em vários lugares. “Disseram que era para eu botar as mãos na parede. Todos estavam armados. Estavam com um papel, dizendo que era um mandado de busca e apreensão. Havia uma foto minha”.

O fotojornalista disse que o que estava ocorrendo era um erro. “Mas um disse que era para eu calar minha boca porque a polícia não erra”. Nesse momento a filha e a esposa dele ainda estavam dormindo. Os policiais pediram para ele acorda-las.

Durante uma hora os policiais ficaram na casa. Revistaram o carro dele, um Celta. “Quanto mais mexiam mais eles estranhavam. Quanto eles reviravam as gavetas só encontravam livros da igreja, santos e terços. Foi tanto que quando foram aos quartos dos meninos nem procuraram mais nada”.

Tranquilidade desde o dia da prisão até os dias atuais

Na altura da movimentação vários vizinhos já haviam notado algo estranho. Mas nenhum pôde entrar. Somente depois que começaram a ver que havia algo errado é que permitiram a entrada de dois vizinhos: um vereador da cidade e um mecânico. Eles foram testemunhas de que a vistoria estava sendo feita sem o emprego de violência.

Mesmo assim Joel foi levado em uma viatura da Polícia Civil. Começava ali mais um capítulo da história de injustiças.

A TRAPALHADA DA POLÍCIA CIVIL QUE MUDOU A HISTÓRIA DAS OPERAÇÕES POLICIAIS NO PIAUÍ

Joel Marques conta que foi levado para a Delegacia Regional de Picos (também no bairro Canto da Várzea – pouco mais de dois quilômetros de sua residência). Lá foi colocado em uma sala com vários dos outros presos da operação. Foram quase 20.

Comprovado o erro: fotojornalista ainda ficou três dias detido na Delegacia de Entorpecentes de Teresina

O delegado responsável pela operação, Samuel Silveira (que meses depois seria candidato a vereador de Teresina obtendo grande votação) não estava mais no local. Já teria rumado para Teresina a fim de prestar esclarecimentos sobre a operação, até então tida de muito sucesso, pois conseguiu tirar de circulação muitos dos considerados os piores traficantes da região de Picos.

Todo o sucesso terminou caindo por terra por causa da prisão de Joel Marques. Fato que começou a gerar revolta da população ainda naquele dia. As redes sociais, com menos poder que hoje, foram tomadas de protestos na cidade.

Mas Joel continuava sem comunicação. “Levaram a gente para uma sala da delegacia. Botaram todos os presos juntos. Eu estava perdido, sem saber o que fazer. O advogado que apareceu disse que nada seria resolvido em Picos, só em Teresina”, relatou, com os olhos marejados.

Por volta das 13h daquele dia Joel Marques e vários outros presos da operação foram levados para Teresina. Destino: Penitenciária Irmão Guido (na zona rural Sul da capital). Um comboio de três viaturas saiu da Cidade Modelo. Joel estava algemado com um dos presos.

Devido ser considerado o líder do bando, Joel Marques conta que sua segurança foi maior que a dos outros.

O que ocorreu em relação às investigações da prisão de Joel Marques se tornaram ponto de debate na formação de policiais civis e o que ocorreu serviu de exemplo para que se tome mais cuidados para o não encarceramento de inocentes em ações da Polícia Civil piauiense.

VIDA NA PRISÃO

Mesmo dizendo-se inocente e já tendo desconfianças de alguns policiais que haviam prendido o homem errado Joel Marques frequentou um dos piores lugares do Piauí: a penitenciária. Foi colocado no setor de triagem (um cubículo de pouco menos de quatro metros quadrados juntamente com outros 16 detentos (sendo quatro da Operação Segor). Ficavam ali novatos e veteranos cumprindo castigo por alguma infração no presídio). “Eu nunca tinha entrado em uma prisão. Era tudo muito escuro e sujo”.

Joel Marques nunca tinha pisado em um presídio

Para quem conhece uma penitenciária sabe que a recepção de uma instituição está longe de ter pompa. Joel Marques conta que foi algemado nas pernas e mãos. “Estava tudo muito apertado. Fui humilhado”.

Foi na Penitenciária Irmão Guido que o jornalista relata ter passado seus piores momentos, com direito a muito choro. “Não dormi. Chorei a noite toda”. Também foi naquele lugar que o jornalista diz ter pensado em cometer suicídio.

Um ponto interessante é que o jornalista recebeu muito apoio dos colegas de cela. “Um chegou a dizer que se eu fosse inocente Deus traria respostas”. “Desde quando fui preso em Picos alguns já diziam que eu não tinha nada a ver”.

POLÍCIA NOTOU QUE PRENDEU O HOMEM ERRADO

Após menos de 24 horas de encarceramento na Penitenciária Irmão Guido advogados enviados de Picos já tinham confirmado a prisão por engano. Mas, mesmo assim, o fotojornalista passou quatro dias na instituição prisional.

Campanha feita nas redes sociais para apelar sobre injustiças contra o jornalista

Policiais da Delegacia de Entorpecentes estiveram no lugar e levaram Joel Marques para a sede da delegacia, no bairro Saci, zona Sul de Teresina. “Eu não conseguia sair da cela, de tão emocionado. Me levaram para a delegacia de camburão, e algemado. Lá é que o delegado Samuel (Silveira) pediu para os policiais retirarem as algemas. Ele pediu desculpas e que estava resolvendo minha soltura. Senti um ar de arrependimento por parte dele”.

Mesmo havendo fortes indícios de que ele não era culpado, ainda continuou detido. Ficou ainda mais três dias na delegacia. Faltava o alvará de soltura.

“Mas o tratamento já foi diferente. Não fiquei mais em cela, fiquei em uma espécie de quarto, dormi em um colchão”, destacou, enquanto esperava passar mais um drama de sua prisão: que o delegado encontrasse o juiz que havia feito sua prisão. Era necessário a revogação.

Enquanto esteve detido na Delegacia de Entorpecentes Joel ainda fez dois exames de voz para comprovar que a voz das gravações do grampo não eram suas. Foi esse exame o responsável por sua soltura já que houve comprovação de que o homem grampeado não era o homem preso. O delegado Samuel Silveira chegou a vir a Picos só para tratar da soltura do jornalista. Ele veio convencer o juiz da cidade, que autorizou a prisão, a revoga-la. “O próprio delegado me incentivou a entrar na Justiça para ter meus direitos garantidos”.

No dia 15 de fevereiro de 2012, ante-véspera do Carnaval de 2012 Joel Marques foi recebido em Picos. Parecia a recepção de um líder político. Houve carreata e muita festa.

JOEL HOJE. JÁ INDENIZADO PELOS ERROS DA POLÍCIA: VIRA PAI DEPOIS DE QUASE 20 ANOS

Entre 2012 e os dias atuais, passados mais de três anos e meio, muita coisa mudou na vida de Joel Marques. Meses depois se formou em Jornalismo pela Faculdade R.Sá (de Picos) e teve seu reconhecimento aumentado entre os movimentos católicos da cidade.

Vida nova e justiça feita

Ele mudou de casa e, 18 anos depois de ter sua filha, virou pai. No final de junho deste ano deste ano nasceu João Gabriel. Joel Marques baba como se fosse seu primeiro filho. “É palmeirense como o pai”, diz o fotojornalista, todo orgulhoso.

O jornalista continua fazendo seus trabalhos fotográficos sociais pela cidade e região e permanece como funcionário público da secretaria de Saúde de Picos, órgão que é servidor concursado.

Continua, mais forte que nunca, como coordenador do Terço dos Homens, movimento de oração católica que reúne semanalmente centenas de homens na Catedral de Nossa Senhora dos Remédios. Permanece um dos líderes do movimento de Encontro de Casais com Cristo e diz continuar cada vez mais forte do que nunca. “Graças a Deus”, fazendo questão de estampar muitas imagens de entidades católicas em sua residência.

Cada vez mais ligado a Deus

Simpático: gosta de um bom papo, de receber visitas e continua um homem simples. “É uma nova vida, uma revirada, deu para ter lição para ver sobre quem tem comportamento com droga, também da questão de aparelho celular, o ciclo de amizades aumentou. Não há mal que não traga um bem”.

Para ele até a Justiça não tardou. Em tempo recorde, em um dos processos indenizatórios mais rápidos da história do judiciário piauiense foi agraciado por uma indenização por danos morais no final do ano passado. O valor ele prefere não revelar. “Só falta pagarem”, destaca, dizendo que está na fila dos recebedores de precatório.

Faz questão de guardar todo o processo que o acusou e o inocentou. Hoje divide o tempo em cuidar do filho bebê, estar com a esposa, trabalhar na secretaria, fazer churrasco e ver a filha crescendo, já estudante universitária, e de ver o filho mais velho dando seus primeiros passos na carreira de policial militar.

Um ponto interessante é que Joel Marques já encontrou várias vezes o homem que se livrou da cadeia porque ele foi confundido e preso no lugar. “Parece que ficou com vergonha de mim, mas também nunca me pediu desculpas e nunca mandou dizer isso com ninguém. Nunca falei com ele. Queria falar com ele para perguntar porque ele fez aquilo comigo, como conseguiu meu CPF para registrar o número de celular”, questionou.

Esse é Joel Marques, uma vítima de enganos policiais que terminou contemplado com Justiça e hoje pode contar sua história. “Até muitos do que não acreditavam em mim, hoje tentam se aproximar. Minha credibilidade só aumentou e muita gente se aproxima de mim. Acho que superei tudo isso”, finalizou o jornalista.

 

 

Fonte: Orlando Berti / O Olho

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